terça-feira, 19 de março de 2019

DESABAFO



No Piauí, dificilmente chove.
Quando chove, para ir à escola, uma menininha tem que atravessar um rio numa boia.
A boia é frágil, é câmara de ar de pneu de carro, a menininha é forte.


No Rio de Janeiro, outra menina vai pra assembleia legislativa e fala como se fosse livre.
Fala como se fosse permitido falar.
Fala como se a liberdade fosse uma instituição estabelecida.
Fala como se a guerra tivesse acabado.

A menininha da boia não sabe, mas a guerra não acabou.
A menina da assembleia também não sabe, mas a guerra não acabou.

Eu, porque vivo distante do chão que me dá segurança,
Distante do pote d’água, distante do quintal, distante do canteiro de cebola e coentro,
Do pé de pimenta de cheiro.
Eu, por ser desconfiado por necessidade, sei que a guerra não acabou.

Sei também que a liberdade é uma corda que levamos no pescoço
E que nos enforcará se quisermos ir mais longe.
Em Auschwitz, enquanto os nazistas queimavam os judeus,
Os alemães livres sentiam o cheiro da liberdade e dormiam tranquilos.

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